Dom

Eu não sou um cara humilde, nunca fui... Sou realista, reconheço meus defeitos, sei que são muitos, mas quando sou bom em alguma coisa eu reconheço que sou bom e não fico de mimimi. Eu faço coisas bacanas, as pessoas me elogiam, eu olho pras coisas que eu faço e vejo que elas realmente são legais, não tenho motivos pra falsa modéstia...

Durante algum tempo meu negócio era desenhar, eu não era um dos melhores, mas eu me virava bem, principalmente desenhando no paint com o mouse. Um dia um cara tava todo metidão com um desenho que ele copiou da capa de um mangá e eu disse “Cara, ta legal, o traço ta firme e a pintura ta boa, mas você devia começar a criar e parar de ficar só copiando, copiar capa de revista eu copio até no paint com o mouse.” O cara ficou nervozinho e me desafiou, bom, eu fiz...

Hoje em dia meu esquema é papercraft, modelismo em papel, pepakura ou como vocês preferirem... Comecei montando modelos criados por terceiros e depois comecei a me aventurar na criação dos meus próprios modelos... e parece que eu to me dando bem nisso. Os modelos que eu monto ficam legais e os modelos que eu crio, quando montados por terceiros, ficam bacanas também.

Como quase todo mundo, eu gosto de receber elogios quando faço algo bem feito. Mas tem um tipo de coisa que eu não suporto ouvir...

“Nossa, você tem um dom incrível...”

“Ah, eu queria saber fazer isso também, mas não nasci com o dom...”

Dom é a cabeça do meu pau. Se você quer ter o dom, da uma pegadinha aqui.

As pessoas falam isso como se eu tivesse nascido com a habilidade mágica pra fazer essas coisas, como se eu não tivesse me esforçado e estudado pra aprender. Na verdade, as pessoas gostam de pensar que quem é bom nasceu com algum tipo de dom porque elas não querem admitir que essa pessoa é melhor que ela porque se esforçou mais.

Eu não nasci sabendo desenhar eu rabiscava como toda criança rabisca, mas enquanto outras crianças gostavam de jogar bola e correr por ai eu gostava mais de assistir desenho animado, olhar as figuras de livros e revistas (depois eu aprendi a ler) e ficar rabiscando... Com o tempo, a observação e a pratica eu fui melhorando e meus rabiscos tomando forma, quando eu percebi, eu já estava desenhando. Mas não era um dom, eu tinha vontade, curiosidade, persistência e praticava bastante.

Me lembro até hoje de estar sentado desenhando no chão na casa do meu tio (um gordo corno filhodaputa) enquanto meu priminho estava deitado no sofá vendo TV. Eu comecei a olhar pra ele e disse pra minha mãe “Nossa, que estranho, tenho a impressão que as pernas do Renan são mais compridas que o tronco...” então minha mãe disse “Mas são mesmo, a anatomia humana é assim, nossas pernas são mais compridas que o tronco. Todas as pessoas normais são assim, olha la no espelho...” E eu me lembro de ter ficado maravilhado com essa descoberta, como eu nunca tinha reparado nisso? Comecei a comparar o tamanho de todas as partes do meu corpo... Será que minhas mãos são maiores que meus pés? Quantos palmos tem meu braço? Quantos pés de altura eu tenho? Onde é a metade da minha altura?

Um monte de perguntas bobas de criança, mas a partir desse dia, sempre que eu ia fazer um desenho eu me lembrava dessas coisas e tentava fazer os meus desenhos dentro das proporções humanas que agora eu conhecia. Enquanto isso todas as outras crianças que eu conhecia continuaram fazendo desenhos de pessoas com as pernas curtas e mãos na altura da cintura. Com o tempo comecei a reparar em outros detalhes como a posição dos pés, as articulações, ponto de equilíbrio... Lembro também que nas atividades da semana do folclore todas as crianças da sala de aula pintavam a pele do corpo do Saci de preto ou marrom mas deixavam o rosto branco.

Recentemente participei de uma oficina de arte para crianças (como monitor) e uma das atividades propostas era desenhar o coleguinha que está sentado na sua frente do jeito que você estava vendo ele. A maior parte das crianças desenhou o coleguinha de pé, sorrindo, com os braços abertos. Só 3 crianças desenharam a cabeleira do coleguinha vista por trás e o encosto da cadeira e mais nada. Essas 3 crianças provavelmente vão escutar no futuro “Você tem o dom de desenhar” mas na verdade elas não desenhavam melhor que as outras crianças, elas só prestaram mais atenção naquilo que a moça da oficina estava falando.

“Desenhe o coleguinha da frente do jeito que você está vendo ele agora.” Por que as outras crianças desenharam o coleguinha de pé sorrindo se o coleguinha estava sentado de costas e de cabeça baixa desenhando? Porque elas não nasceram com o dom do desenho?  Creio que não né...

Desenho é prática, quanto mais você faz, melhor você faz. Desenho é igual sexo, você aprende fazendo. Se você não se esforçou o bastante pra desenhar tão bem quanto eu não me venha com desculpas místicas e sobrenaturais. Eu não tenho o dom, eu só me dediquei mais a isso que você.

O mesmo vale para o papercraft. Muita gente diz “Nossa, eu queria saber fazer essas coisas legais que você faz, mas não tenho o dom.”

Novidade pra vocês amiguinhos, eu não nasci com o dom do papercraft, eu só descobri oque era isso no dia 31 de agosto de 2007. Eu vi na internet um Gundam feito de papel e pensei “Noooossssaaaaaa.... Que legal... Quero fazer um desse também!!!” e no lugar de concluir que o cara que fez tem o dom e eu não e por isso eu nunca conseguiria fazer um igual, eu comecei a revirar a internet procurando informações sobre o assunto e na mesma noite eu estava começando a recortar meu primeiro modelo num papel sultite molenga que deixaria meu robô todo torto. Com essa minha primeira experiência eu conclui que precisava de um papel mais firme e meu segundo modelo foi em papel cartão que era duro demais e me deixou com dores nas mãos. Depois usei papel opaline, canson, cartolina, até chegar no meu predileto que é o sulfite colorido de gramatura 120. A escolha da cola também foi um problema, não sabia qual usar e nem a quantidade, meus primeiros modelos eram encharcados de cola e com manchas por causa do exagero, comecei com cola branca, usei cola de isopor, super bonder até finalmente chegar nma cola transparente Scptch (olha o marketing ai gente). Comecei dobrando tudo na unha, depois aprendi a vincar com ferramentas como réguas, pinças, canetas sem tinta, estilete cego...

Deu pra perceber como funciona né negrada? Ninguém nasce sabendo, a gente tem que tentar e se esforçar pra aprender.

Se você não quer se esforçar, tudo bem, não precisa. Mas quando vier elogiar meus trabalhos faça o favor de dizer “Nossa, que disposição eim, eu não tenho coragem pra fazer isso” ou então “Poxa, que legal, deve dar um trabalhão, se eu tivesse tempo eu tentaria aprender também” mas não me venha com esse papo de dom. Não tente justificar sua falta de disposição, não menospreze o meu esforço e o tempo que levei pra aprender as técnicas.

O mesmo vale pra dança, esportes, música, estudos...

Eu nunca disse pra ninguém que eu não sei dançar porque não nasci com o dom. Eu não sei dançar porque eu não estou disposto a fazer certos sacrifícios pra aprender. Eu gosto, mas não estou disposto. Eu não sei jogar bola porque eu não gosto então nunca me esforcei pra isso. Eu não sou bom nos estudos porque eu preferia ficar desenhando na sala de aula.

Existem pessoas que são boas nessas coisas. São pessoas que deram o sangue pra aprimorar suas habilidades. Elas se esforçaram. Ninguém pode ser bom em tudo e provavelmente elas sacrificaram outras coisas pra atingir esses objetivos. Se essas pessoas tem algum tipo de dom é o dom de tomar a iniciativa e correr atrás, o dom de se esforçar no lugar de ficar inventando desculpas. O dom de ter força de vontade. Se é esse tipo de dom que você nasceu sem... Bom, se mata.